Ia decidir-se da vida ou da morte do infante. Iam começar as cortes gerais.
Na larga sala da alcáçova, os procuradores da cidade e das vilas do Reino, povo ardente e escuro, a alma rude e antiga de Portugal, ganhavam os seus lugares marcados segundo a precedência das vilas e das cidades, em doze longos bancos. Lá estava, assentado no primeiro banco, orgulhoso do mais nobre lugar, o procurador do Porto, o sapateiro de polaina João Bartolomeu, olhos vivos, raça ardente, barba negra, metida num enorme capuz cor de terra; o de Viseu, que troxera um oleiro moço, lambuzado de barro, as manzorras enormes vermelhas de tinta; um ferreiro negro de Portalegre, chamuscado da forja e os outros, e todos.
O sol jorrava agora sobre os bisbos e arcebispos, que vinham entrando. Veio então a nobreza: os infantes; títulos, cavaleiros, senhores de terras, escuros, torvos, e por fim, rodeado de doutores, de cónegos, de frades, D. Duarte surgiu ante o assombro consternado dos procuradores do povo, que perguntavam uns aos outros de pescoços estendidos, de olhos redondos de espanto, se aquela sombra dolorosa e devastada seria o Rei de Portugal.
Na alma angustiada de D. Duarte, uma esperança nascia agora. Talvez aqueles duros arcaboiços se apiedassem; talvez o povo sentisse fundo no seu coração, que a vida de um Infante de Portugal valia bem o montão de pedras duma cidade.
Ao pé do Rei, Fernão Lopes, que fora escrivão do Infante D. Fernando, o velho Gaspar Vasques, seu capelão e seu amigo, choravam em silêncio. Um asa negra de morte pairava sobre todos os corações. Ouvia-se uma mosca que passasse, quando Fernão Guerra, arcebisbo de Braga ergueu a voz. Falava em nome da fé; falava em nome de Deus:
- Não; o Rei não podia entrgar Ceuta. Ceuta era um bispado; Ceuta estava coalhada de igrejas; Ceuta tinha ainda mais cruzes do Redentor do que pedras-de-armas de Portugal. Nem o Rei, nem as cortes podiam, num voto que seria um sacrilégio, arrasar essas cruzes, profanar esses templos, vender Cristo pela segunda vez.
E enquanto o arcebisbo se sentava, erguia-se já o moço conde Arrailos, duro, trigueiro, terminante, olhos fuzilando, a bradar, de braços levantados:
- Vergonha de perdição!
Quem falava em comprar vida com honra? Onde estava ai a vida de homem, que valesse uma pedra de Ceuta? Quem dera já uma cidade por esse fumo de estopa que é a vida? Queriam salvar o Infante? Pois bem: que fossem todos - e ele iria com eles! - arrasando Tânger, conquistando Arzila, mordendo sangue e pó, arrancá-lo ao coração de Fez! Era assim que se salvava o filho dum Rei; era assim que se remia um Infante cativo de Portugal, - e não cobrindo-o de lama, de desonra e de tristeza!
- Vergonha de Perdição! Vergonha de perdição!
Agora falava já o povo. Era um procurador do Porto, mestre de polaina João Bartolomeu, que trovejava, o capuz negro derrubado sobre os ombros, a manzorra escura no ar, um soluço a apertar-lhe a garganta:
- Senhor Rei! Mandai-me a mim, mandai-nos a todos nós a morrer no lugar do senhor Infante, mas guardai Ceuta!
Um mermúrio aflitivo subia das bancadas do povo, da primeira à última, do Porto a Portel, rouco estrangulado, devorado de lágrimas:
- Guardai Ceuta! Guardai Ceuta senhor Rei! Guardai Ceuta senhor Rei!
Muitos deles, ferreros, oleiros, calafates, crânios negros e curtos, testas baixas e rudes, não saberiam dizer talvez, se lhes perguntassem porque razão devia conservar-se Ceuta na Coroa Portuguesa; mas viam, sentiam claramente, pela força do seu instinto, pela violência persuasiva do seu bárbaro amor pátreo, que era preciso conservá-la, sofrendo quem sofresse, pelo preço de todas as torturas, com sacrifício de todas as vidas, porque assim o reclamava o nome de Portugal.
- Guardai Ceuta! Guardai Ceuta!
D. Duarte levantou-se, como um espectro, a fronte banhada dum suor de agonia. Amparam-no frades. Era a sentença de morte do irmão cativo, que o seu próprio sangue confirmava. Um estremeção de horror agitou o corpo vacilante do Rei.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Comentar