quarta-feira, 4 de março de 2009

Livros - Afonso de Albuquerque - O sonho da India

Logo que Vasco da Gama voltou da India com as naus desmanteladas e tripulações muito reduzidas, toda a Nação Portuguesa se alvoroçou. O empreendimento em que uma geração inteira se tinha gasto fora coroado de êxito retumbante. Estavam finalmente abertas de par em par as portas do Oriente, que durante mil e quinhentos anos se conservaram cerradas á Europa.
Se quisermos compreeender o sentir deste povo, quando se descobriu o caminho maritimo para a India, bastar-nos-á visitar a Igreja de Belém. Toda a alegria exuberante de uma raça moça e vigorosa, o seu encanatamento perante os novos horizontes que se lhe iam deparando, visões de fantásticas regiões longinquas, tudo está representado, para sempre, na pedra daquela estranha flora quimérica que ornamenta a arquitectura conhecida por Manuelina.
Ai, no meio da confusão de cabos entrelaçados, algas e conchas, junto de colunas encrostadas como rochedos submersos, sob as abóbadas que t~em a beleza de grutas submarinas, podemos perceber os ecos de um hino triunfal ás maravilhas do mar. Belém comemora um sonho que se tornou realidade, um milagre levado a cabo.
A expansão portuguesa de além-mar é fenómeno inexplicável à face da história. O desejo de espansão supôe falta de espaço e os portugueses tinham mais que o bastante na sua linda Pátria pequenina; a população era muito inferior a dois milhões de almas. A Nação acabava de sair de uma luta secular, de vida ou de morte, primeiro com os mouros e depois com os castelhanos. A razão por que havia este povo de sentir-se instigado a espalhar-se pelo mundo desconhecido, depois de ter alcançado a paz pela vitória sobre os seus vizinhos, é enigma indecifráfel.
«O reino está muito pobre e minguado de gente para guarnecer as terras de além-mar. Seria impossivel conservá-las!» Assim dissera o sábio infante D. Pedro em 1436, quando se premeditava a conquista de Tânger. Não se pode negar que fossem sensatas as suas palavras. Todavia, menos de um século depois, sem qualquer auxilio de homens ou de dinheiro estranhos, Portugal estava senhor, não só de todas as cidades mais importantes de Marrocos, mas também de territórios em toda a costa de África, e impunha a sua vontade a metade dos reies da Ásia.
Não é de admirar que esta grandeza não fosse duradoura. Maravilha é que tenha existido. Para que um país com os recursos de portugal, podesse conservar as suas conquistas, seria indispensável uma raça de heróis e o génio que os dirigisse. A cópia de heróis não sofreu interrupção, mas o génio não é hereditário. Houve, certamente, inúmeros grandes homens. Os séculos quinze e dezasseis foram épocas de vida e produziram personalidades dinâmicas em todos os países, mas o dominio português, para além-dos-mares, foi inaugurado e estabelecido por dois espiritos superiores que muito sobrelevam à sua geração: O infante D.Henrique - o Navegador - foi a força que impeliu a nação a explorar o Atlântico desconhecido, a rasgar os mistérios do Globo terreste, lançando-a assim no caminho da India; e o grande Afonso de Albuquerque assentou os alicerces do Império no Oriente.
Na história desse século poderemos ler os noms de muitos que talharam para si reinos com a espada, mas Albuquerque é único entre eles. Precisamente como as explorações portuguesas, projectadas sistemáticamente e cientificamente realizadas, diferem da aventura fantástica de Colombo, tambem Albuquerque nada tem de comum com os conquistadores espanhóis fanfarrões do Novo Mundo.
Não foi nehum soldado da fortuna em busca de despojos. Não procurava riquezas para si e os tesouros do oriente não o engodavam.
Escravo de uma ideia, só para ela queria viver e por ela trabalhar. Ora nos surge marinheiro, ora soldado, estadista, administrador ou diplomata, com igual competência e saber em todas as situações, pondo sempre as suas múltiplas faculdades ao serviço de um único fim: fundar um poderoso império no Oriente, exaltar o sei Rei e a sua Pátria.
Não são os êxitos guerreiros de Afonso de Albuquerque, por muito assombrosos que sejam, que nos revelam a verdadeira grandeza do homem. No campo de batalha Albuquerque é um dos mais brilhantes cabos de guerra do seu tempo, que fazia a guerra à moda feroz da sua época; mas quanto a obra construtiva é único.
A obra de Albuquerque foi, essenssialmente, construtiva, Reconhecemo-lo quando o vemos ocupado no gigantesco edificio que havia delineado, erguendo-o parcelarmente, prodigalizando os mesmos cuidados a todos os promenores, sem nunca perder de vista o conjunto. Albuquerque construia para o futuro, para durar - «as coisas que fazia», observou um contemporâneo, queria, «que durassem para sempre». Felizmente para ele, nunca chegou a saber que a sua obra, pela própria natureza das coisas, não podia ter continuidade. Nasceu muito antes do seu tempo e os principios em que ele fundava o dominio colonial só em meados do século XX triunfariam.
Governar homens de outra raça sem os escravizar, respeitar-lhes os custumes e conceder-lhes a liberdade religiosa, fazê-los experimentar uma justiça que eles desconheciam, deixa-los tomar parte no governo, educar e formar as novas gerações - podem ser os fins declarados de toda a administração colonial de meados do século XX, e por isso recentes. Não teria lembrado a muitos contemporâneos de Albuquerque ou posteriores, que um povo conquistado podia tornar-se mais feliz com a conquista. Considerar os naturais de uma colónia, não como meros servidores do branco, mas como súbditos do mesmo estado, cujas liberdades são garantidas pela mesma bandeira, é uma ideia recente. De todas estas ideias Albuquerque foi um precursor que tanto ultrapassara a sua época que, ao vagar o seu lugar, não havia quem o ocupasse.
Foi somente depois de a Europa ter tido na Ásia a experiência de trezentos anos, que homens de outra nação chegaram ás conclusões que ele tinha descoberto por si, havia tanto tempo, se se orientaram por teorias semelhantes ás dele.
Homem de vontade indomável, Albuquerque teve muito quem o contrariasse em vida, especialmente entre os seus subordinados; todavia, parece que nenhum conquistador deixou atrás de si uma impressão de perda mais profunda, nem mais geral. Quando a sua mão de ferro deixou de pesar sobre a India - o India chorou e foi rezar-lhe no túmulo. Os capitães endiabrados e a soldadesca brava que se lhe haviam submetido, enraivecidamente, à disciplina, verificaram que quase não valia a pena servir outro senhor.
O novo governador, Lopo Soares, homenzinho irascivel e espalhafatoso, viu-se perante uma multidão de descontentes, europeus e indigenas, e reconheceu que, para suceder a um gigante, era preciso ser gigante.
E, nos anos seguintes, os veteranos, de longas barbas e cobertos de cicatrizes, falavam, de respiração contida, do tempo de Afonso de Albuquerque, como de dias alcióneos que não podiam voltar mais. E assim foi. Nenhum dos sucessores de Albuquerque teve talento para continuar a sua obra.
Provavelmente nem o próprio Albuquerque poderia levar a cabo o seu grandioso projecto. Os impérios com que sonhava eram demasiados vastos, para que um país pequeno os podesse sustentar; todavia, enquanto ele viveu, estavam longe de parecer impossiveis.
Com efeito, em seis anos de governo, sempre manietado pela falta de homens, de navios e de dinheiro, bem como pela estreiteza de vistas e pelas suspeitas injustas do Rei, Albuquerque fez sentir a sua influência desde a Arábia até á China, e apossou-se das chaves do Oceano Índico.
A Pérsia, o Sião e a Abissinia solicitavam a sua amizade, ao mesmo tempo que uma dúzia de reizetes indianos inquietos, se informavam dos seus desejos, enviando-lhe emabaixadas respeitosas.
«Pera os tratos da India se fazerem como cumpre a vosso serviço», escrevia ele a D. Manuel, dai-me «nela três mil homens, bem armados». Nunca lhe deram o que pedia; mas, quando morreu, Portugal era a potência que na Ásia mais se fazia temer.
Por única recompensa teva a ingratidão do real.



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