quinta-feira, 22 de novembro de 2007

O Sangue

"Empregamos esta palavra como significando Herança.
Os rubros glóbulos sanguínios trazem, dentro da sua microscópica esfera, antigos espectros que resurgem e vão definindo o carácter dos indivíduos e dos Povos.
Gritam no sangue velhas tragédias, murmuram velhos sonhos, velhos diálogos com Deus e com a terra, esperanças, desilusões, terrores, heroísmos, que desenham, em tintas vivas, o cenário e a acção das nossas almas.
O sangue é a memória, presença de fantasmas, que nos dominam e dirigem.
À voz do sangue responde a voz da terra; e este diálogo misterioso mostra caractéres da nossa íntima fisionomia portuguesa.
A Ibéria foi primitivamente povoada por diversos povos de que descendem os actuais castelhanos, vascos, andaluzes, galegos, catalães, portugueses, etc.
Aqueles Povos pertenciam a dois ramos étnicos distintos, diferenciados por estigmas de natureza física e moral.
Um dos ramos é o ariano (gregos, romanos, godos, celtas, etc.); e o outro, é o semita (fenícios, judeus e árabes).
O Ária criou a civilização greco-romana, o culto plástico da Forma, a beleza concebida dentro da Realidade próxima e tangível, o Paganismo; o Semita criou a civilização judaica, a Bíblia, o culto do Espírito, a unidade divina, a beleza concebida para além da matéria.
O Ária cantou, nos cumes do parnaso, a verde alegria terreste, a infância, a superfície angélica da vida; o Semita glorificou, nos cerros da Calvário, a dor salvadora que nos eleva para o céu, o sonho da Redenção, pelo sacrifício do espiritual.
Povos destes dois ramos étnicos tão diferentes, misturaram-se na Península, originando as antigas nacionalidades que Castela submeteu à sua hegemonia, com excepção de Portugal. Todavia, conservam uma certa independência moral revelada pelos idiomas ainda hoje falados na Espanha.
Portugal resiste, há oito séculos, ao poder absorvente de Castela. Demonstra este facto que, de todas as velhas Nacionalidades Peninsulares, foi Portugal a dotada com mais força de carácter ou de raça.
E este seu carácter, trabalhado depois pela Paisagem, resultou ou nasceu da mais perfeita e harmoniosa fusão que, neste canto da Ibéria, se fez do sangue ariano e semita.
Estes dois sangues, equivalem-se em energia transmissora de heranças, deram à Raça lusitana as suas próprias qualidades superiores, que, em vez de se contradizerem - pelo contrário - se combinam amorosamente, unificando-se na bela criação da alma Pátria."

Teixeira de Pascoaes